Trabalho flexível, lazer flexível: Netflix e o desejo “on demand”
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Por Anna Kornbluh
rnO fluxo é primordial para a distribuidora Netflix, cuja breve história resume as profundas mudanças na circulação de vídeo a partir da década de 1990 que passaram a ser mudanças em sua produção. Revolucionando a circulação de vídeo ao contornar a locadora física, que, por sua vez, tinha revolucionado o consumo da imagem em movimento, a Netflix foi fundada em 1998 como uma locadora de DVDs por e-mail com um catálogo de 925 títulos — basicamente todos os filmes em DVD existentes na época, visto que esse mídia existia há apenas três anos. O auge do DVD foi em 2011, quando a Netflix entregou discos para 14 milhões de assinantes através do serviço postal dos Estados Unidos; depois disso, em 2012, a Netflix passou de distribuidora de conteúdo para produtora de conteúdo, estreando sua série original Lilyhammer, seguida, em 2013, pelo sucesso estrondoso House of Cards1. Esse mesmo ano foi o divisor de águas em que a renda de anúncios na televisão foi eclipsada pela renda de assinaturas de provedores de TV a cabo e streaming2. Nesses seus quase catorze anos de juventude, a companhia cresceu rapidamente de um modelo “pague por disco” para um modelo de assinatura que oferecia consumo virtualmente ilimitado para seus 203 milhões de usuários — convertendo-se na maior empresa de mídia digital do mundo, no nível de corporações tradicionais como AT&T, que, em contraste, é uma senescente de 136 anos de idade.
rnO DVD matou a videolocadora, e, depois, a Netflix desintermediou ainda mais a circulação da imagem em movimento, contornando o serviço postal com o advento do streaming (e das infraestruturas ocultas de centros de dados com suas vastas extensões de terra desapropriada e os tanques de água em turbilhão exigidos para mantê-las)3. O streaming é o acesso instantâneo a vídeo via redes que não exige downloads nem espaço de armazenamento e é responsável por bem mais de 50% — às vezes até 80% — de todo o tráfego da web em qualquer período. Em apenas três anos, de 2019 a 2022, filmes feitos para o streaming passaram de inelegíveis menoscabados para ganha dores do Oscar de melhor imagem, enquanto a plataforma de compartilhamento de vídeo TikTok se tornou o aplicativo mais usado no mundo. Algoritmos de compressão avançados, inovações em cabos de fibra ótica, aprimoramentos de telas de polímero/cristal líquido/plasma e o crescimento explosivo do smartphone foram essenciais. O primeiro iPhone de 2007 incluiu o YouTube em sua suíte de aplicativos nativos, capacitando os usuários a assistirem a vídeos do sofá — durante um deslocamento diário, na fila da agência dos correios, relaxando na beira da piscina —, embora ainda não pudessem gravá-los; embora, no início, os planos de dados e as limitações da rede restringiram o fluxo incessante, não demorou até que os consumidores passaram a povoar uma paisagem midiática em que se tornou possível fazer fluir quase qualquer coisa a quase qualquer hora. Todas essas especificações técnicas facilitaram o fluxo contínuo como experiência de acesso direto, liberdade sob encomenda e imersão em tempo real.
rnComo a centralidade do smartphone dá a entender, o streaming é definido também pelo que a indústria denomina “integração de dispositivos”, uma desespecificação de tecnologia e meio, assegurando que, como prometeu o CEO da Microsoft Steve Ballmer em um discurso-chave de 2009, “a fronteira entre o televisor e o computador pessoal se dissolverá”4. Seu concorrente Apple já vendia (desde 2007) Apple TVs, um dispositivo de hardware que converte televisores em tocadores digitais de coisas como podcasts e jogos, e que acabou apresentando uma suíte de aplicativos na tela da televisão como se fosse um computador pessoal. Ademais, o micropainel de instrumentos não possui controles manuais; o iPhone é o controle remoto preferencial, integrando o telefone portátil, o televisor e o computador de mesa. Muitos televisores de LCD e de alta definição agora vêm com sistemas operacionais próprios que imitam essa computadorização da tela de TV; os usuários só precisam inserir suas senhas para vários serviços de streaming e de aplicativos e podem navegar no televisor como fariam em um computador. Essas sinergias conferem forma aos circuitos de imediatez eletrônica, com imagens espetaculares fluindo ao toque dos dedos e satisfação instantânea de todo e qualquer desejo por vídeo — nosso desejo é on demand [sob demanda]. Uma mentira, infelizmente. Os altos custos de transferência de filmes antigos para arquivos de streaming digital relegam um enorme arquivo antigo à obscuridade inacessível. A multiplicação de canais, plataformas, senhas de assinatura e contratos de licença de uso rotativos se somam numa funcionalidade em que frequentemente demora mais para acessar um filme sentado no sofá do que caminhar até a Blockbuster na vizinhança. Além disso, a aparência da escolha ilimitada mascara a realidade material de que temos de acessar a “programação do horário nobre” às onze e meia da noite na cama ou às sete horas da manhã na academia de ginástica, em vez de no horário nobre uniforme das oito às dez horas da noite na sala de estar como antigamente, porque agora todo mundo trabalha 24/7. Trabalho flexível, lazer flexível.
rnBebendo da torneira sempre que encontramos ocasião, achamos um fluxo permanentemente disponível, ligado: Netflix inovou no modelo de acesso instantâneo para o streaming, oferecendo suas primeiras séries originais como temporadas inteiras lançadas numa tacada só. O termo “binge-watch” [maratona de séries] surgiu em 2013 e foi eleito a “palavra do ano” pelo Collins English Dictionary em 2015; embora a prática existisse difusamente já na década de 1980 (com os canais a cabo fazendo transmissões noturnas de múltiplos episódios de uma única série ou certas subculturas promovendo sessões presenciais para maratonar conteúdo em VHS, ou mesmo longas-metragens como Shoah [1985] ou Satantango [1994], que escaparam do rótulo da compulsão [binge]), ela se tornou realmente definitiva na experiência de fluxo contínuo da década de 2010. Em 2016, a Netflix instituiu a funcionalidade auto-play, que inicia automaticamente o próximo episódio assim que termina o anterior,
tranquilizando o espectador até mesmo em relação ao ato de apertar um botão para afirmar seu desejo de continuar. David Lynch, o raro diretor perverso com poder de barganha, ainda consegue insistir em lançamentos semanais (como ocorreu com sua retomada de Twin Peaks em 2017), e companhias tradicionais como HBO ainda conseguem se dar bem espaçando o lançamento inicial de conteúdo original para gerar suspense e se diferenciar do fluxo contínuo. Porém a compulsão é “o caminho e a vida”; a corrente [stream] constante é um jato oceânico de fluxo imersivo.
Quanto mais assistimos, mais do mesmo há para assistir. A produção de entretenimento converge com a produção de dados, pois o núcleo algorítmico dos serviços de streaming auxilia as empresas a vender o serviço (em vez do conteúdo) como seu produto, enquanto, por seu turno, vendem dados do usuário para outras empresas. Algoritmos são procedimentos automatizados para gerar padrões e trocas, compondo unidades diferentes em categorias de ordem superior. Por conseguinte, eles fabricam consistência onde havia variabilidade e conseguem tornar efetiva certa homogeneidade: tudo são dados. Intelectualmente, algoritmos podem gerar abstrações úteis que podem, então, ser empregados para diferentes propósitos. Por exemplo, a Netflix usa um algoritmo muito poderoso para gerar seu produto principal e seu serviço principal; mas este livro também usa uma espécie de lógica algorítmica na tentativa de inferir o estilo da imediatez de uma ampla variedade de fenômenos e mídias. O algoritmo Netflix Cinematch opera não só rastreando nossas preferências (por exemplo, com quantas estrelinhas premiamos um filme), mas também rastreando nossos hábitos (que tipo de filme assistimos
até o fim ou em que horários do dia).
Na tela inicial de filmes individuais, o Cinematch passou a mostrar, não a taxa agregada de filmes oriunda de um serviço como o “Metacritic”, mas uma correlação mais subjetiva de filmes — baseada em microtags e classificações de gênero —, considerando nossos hábitos e preferências como espectadores. Com a subdivisão das contas da Netflix em membros individuais de um mesmo domicílio, uma mãe recebe seleções diferentes das de sua criança, e ainda por cima com diferentes índices de correspondência; um filme como A escolha perfeita pode mostrar um índice de correspondência de 99% para um indivíduo, mas um de 33% para sua esposa. Por meio de processos algorítmicos, a maneira como consumimos TV, assim como o conteúdo do que escolhemos, são direcionados para um individualismo e imediatismo em que podemos instantaneamente recorrer a uma “experiência de espectador” altamente customizada para o nosso perfil; nadamos num grande rio de merda da nossa própria analítica excretória, tendo a TV como espaço seguro. O historiador de mídia Dennis Broe argumenta que, em consequência, o fluxo é intensificado em vez de dispersado por plataformas de streaming, já que os espectadores individuais são ainda mais direcionados para conteúdos compulsivos e para atender o imperativo de ceder a um novo atratrivo5. Ao escrever sobre a personalização algorítmica usada não só pela Netflix e Amazon, mas também pelo Google, o ativista da mídia Eli Pariser observa que “o monitor do seu computador é uma espécie de espelho de mão única, refletindo seus interesses enquanto observadores algorítmicos vigiam seus cliques”6. Tanto a nossa informação quanto o nosso entretenimento é confeccionado sob medida, inclusive em mídias além das televisivas: o estilo Netflix de consumo imediatista transbordou para modelos de cardápio de músicas (Spotify), videogames (Shadow), revistas (Next Issue), audiolivros (Audible) e mais. E toda essa personalização sustenta uma suspensão permanente do estádio do espelho, uma fortaleza do imaginário, minimizando a possibilidade de mediações do outro.
rnServiços de streaming produzem conteúdo original, visando a grandes sucessos que atraiam novos assinantes, mas o modelo do público cativo também induz a produção de conteúdo nichado concebido algoritmicamente e executado de modo medíocre. O que importa nesse estilo é o caráter derivativo dos enredos e da estética. Por exemplo, uma série como The Expanse é reconhecida por seu público cativo como uma Battlestar Galactica mais morna e politicamente inócua7. A mesmice é um efeito crucial desses processos derivativos; a disponibilidade de enormes quantidades de conteúdo obscurece a uniformidade básica de sua criação e a concentração do centro industrial nas quatro redes principais e nos remanescentes do estúdio de Hollywood, pelos quais a maior parte do conteúdo ainda é produzida e/ou a maioria dos seus criadores ainda se desenvolve8. O streaming homogeniza formalmente. Não é HBO; é Hulu Plus Live TV.
rnEssas mudanças de modelo de negócio complicam a ideia de que atualmente vivemos em uma “era de ouro da TV”. A categoria da imediatez tira um pouco desse brilho, demarcando que essa era chegou furtivamente ao fim. O que foi a TV de prestígio? Uma elevada consistência de qualidade na produção de canais abertos e a cabo, megassucessos de programas individuais e, sumamente importante, realizações estéticas na cinematografia e na narrativa audiovisual no final da década de 1990 e início da década de 2000, com séries como Buffy, a caça-vampiros, Oz, Família Soprano, The West Wing, A escuta e
The Shield9. Sumamente “complexa”, como formulou o estudioso da mídia Jason Mittell, a TV de prestígio apresenta protagonistas complexos — conflitivos e evoluindo em termos morais, psicológicos, profissionais e sociais, eles podem ser sociopatas ou traficantes de drogas ou justiceiros ou políticos (ou todos esses juntos); tramas complexas — múltiplas, não lineares e frequentemente pendentes de palavras isoladas ou pequenos gestos; e uma plateia reciprocamente complexa — sintonizada, fixada e detetivesca10. Visto da perspectiva privilegiada de 2022, esse período de TV de prestígio aparece como uma era limitada de dramas centrados no local de trabalho, produzidos com grandes elencos e elevado valor de produção de modo a garantir a sobrevida das marcas de TV a cabo em um momento em que os novos serviços de assinatura estavam começando a alterar o modelo de negócios de TV a cabo, e que proporcionaram investimentos de menor risco quando os estúdios e os atores foram afastados das produções cinematográficas após a bolha das pontocom. O que vem depois é o fluxo contínuo [stream], a água-régia para o ouro do prestígio.
Nota
rn“In the Stream: Netflix Still Mailing DVDs”, Link, 22 jun. 2020; disponível on-line. ↩︎
rnAmanda D. Lotz, The Television Will Be Revolutionized (2. ed., Nova York, New York University Press, 2014). ↩︎
rnPara uma correção inovadora da desatenção às infraestruturas de mídia na economia digital, ver Lisa Parks e Nicole Starosielski (orgs.), Signal Traffic: Critical Studies of Media Infrastructures (Urbana, University of Illinois Press, 2015). Sobre o ocultamento da infraestrutura, ver Tung-Hui Hu, A Prehistory of the Cloud (Cambridge, MIT Press, 2015). Sobre desapropriação, ver Phil A. Neel, Hinterland: America’s New Landscape of Class and Conflict (Nova York, Reaktion, 2018). ↩︎
rnTodd Spangler, “CES 2009: Microsoft CEO Says Screens Will Converge”, Multichannel News, 7 jan. 2009; disponível on-line. ↩︎
rnDennis Broe, Birth of the Binge: Serial TV and the End of Leisure (Detroit, Wayne State University Press, 2019), p. 23. ↩︎
rnEli Pariser, The Filter Bubble: How the New Personalized Web Is Changing What We Read and How We Think (Nova York, Penguin, 2011), p. 3. ↩︎
rnBroe faz uma lista desses derivativos, na qual inclui exemplos como Sense8 enquanto versão para TV de A viagem ou Girlboss como repeteco de